O Princípio da Fraternidade Aplicado às Condições Sociais
Desejo alongar-me esta noite sobre a aplicação do princípio de Fraternidade na vida humana, sobre a maneira como nos será necessário empregar esse princípio para resolver os problemas que atualmente nos preocupam, sobre os meios a empregar para passar, sem transição demasiado brusca, a um grau superior de civilização, procedendo com calma antes que pelo ódio e pela revolução. Uma revolução não pode aliás provocar senão uma paz relativa, pouco duradoura, em breve perturbada por novas lutas que incitam e despertam os maus instintos agravando e prolongando a miséria.
Se o princípio de Fraternidade deve nos servir de algum auxílio para aplanar as dificuldades que atravessamos, é antes de tudo necessário a gente entender-se acerca da palavra: Fraternidade, e compreender uma vez para sempre o que ela implica. (p. 104)
Em primeiro lugar, Fraternidade não significa de modo algum Igualdade. Para vos convencerdes disso, bastará observardes a natureza; o princípio de Fraternidade dela se infere, mas não podereis ver aí a Igualdade.
De fato, essa questão deve antes fazer-vos pensar na constituição duma família onde o princípio da desigualdade é notório. Aí encontrais efetivamente o mais velho e o mais novo, o experimentado e o inexperiente, aqueles que guiam e os que obedecem.
Se, pois, aspirarmos ao advento de uma sociedade tendo unicamente por divisa a palavra Igualdade, o princípio de Fraternidade deve ser então inteiramente rejeitado. Com efeito, enquanto pretenderdes edificar um sistema, ou desencadear a guerra social para obter a Igualdade, infringis as leis da Natureza e perseguis uma quimera em vez dum fim real e razoável.
Nada mais admirável, em nossa volta, que todas essas desigualdades que, na natureza, contribuem para a própria harmonia das coisas. Melhor ainda, se, desviando a vossa atenção desse vasto domínio que a variedade dos objetos e dos seres caracteriza, nos restringirmos ao estudo do homem, aí, como em toda a parte, o princípio de desigualdade se impõe.
As diferenças de idades numa família não são as únicas a tomar em consideração; há ainda a diferença de capacidades, de poderes, de aptidões, de qualidades. De que igualdade se poderia tratar entre o doente e o homem de perfeita saúde, entre um simples enfermo tendo conservado o uso da maior parte dos (p. 105) seus membros e o paralítico, entre o cego e o que vê, entre o gênio e o estúpido ou o idiota?
A desigualdade das condições é uma lei da natureza; a igualdade não pode ser considerada como tal. É desperdiçar forças ao tentar edificar um sistema baseado em ficções tiradas dos ensinamentos dos utopistas, ficções que se desvanecem quando chega o momento de as aplicar à vida humana.
“O homem nasceu livre”, declarou-se na América, e interpreta-se essa declaração como se ela implicasse o princípio de igualdade, sem se notar que na realidade ela está absolutamente em contradição com todas as coisas da vida humana. O homem quando nasce não é mais que uma criancinha e dependente; isto é tão certo que se ele fosse abandonado às alegrias da Liberdade, o seu crescimento seria rapidamente comprometido. Uma criança não nasce livre: ela depende de tudo o que, em volta de si, deve contribuir para o seu desenvolvimento. Se, ao vir ao mundo, não fosse cercada de afeição e de cuidados especiais, não tardaria a extinguir-se algumas horas apenas após ter visto a luz.
A Necessidade de uma Hierarquia
As duas Sociedades que, no mundo, adotaram o princípio de Fraternidade Universal, admitem ambas (p. 106) a necessidade de uma hierarquia. É um fato dos mais significativos. Tomai a grande Fraternidade Maçônica!
Aqueles que nela estão filiados proclamam a Fraternidade Universal por toda a superfície do globo, e, todavia, a autoridade dos oficiais de uma Loja é respeitada com o maior rigor, sendo aí a Hierarquia considerada como a condição sine qua non da Liberdade.
Na Sociedade Teosófica que também escolheu, para um dos seus fins, a Fraternidade Universal, acontece o mesmo. Os membros admitem e reconhecem a existência duma Hierarquia que guia os destinos da humanidade, que preside o desenvolvimento gradual do homem. Uma poderosa Hierarquia cuja sabedoria é tão grande que tem assim o direito de dirigir.
As ordens que essa Hierarquia dita são alegremente cumpridas pelos membros menos importantes da Sociedade que reconhecem todos a autoridade Daqueles que sabem ser-lhes superiores.
Aí jaz, na verdade, a origem da Liberdade. Sem essa ordem hierárquica, segundo a qual a lei e a sabedoria governam e o ignorante obedece, é impossível empreender seja o que for que possa ser digno de ser batizado com o nome de liberdade.
Como espero provar-vos porque quero dizer-vos ainda mais, jamais vimos a liberdade na terra fora das fileiras dessa grande Hierarquia humana; somente temos (p. 107) visto os direitos de diferentes classes, os direitos dum grupo sobre outro; nunca vimos liberdade, não estando o homem suficientemente evoluído para compreender as condições fora das quais a liberdade não poderia existir.
Não perdendo de vista esse fato extraordinário de duas sociedades somente, ao proclamarem a Fraternidade universal, admitirem além disso uma ordem hierárquica, procuremos ver até que ponto pode ser estabelecida uma hierarquia na grande fraternidade humana. Abandono, quanto ao presente, essa gloriosa Hierarquia oculta a que há pouco aludi, pela humanidade ordinária tal como todos nós a conhecemos. Podemos fazer quase uma ideia do que devia ser um Estado encarando uma família em que é reconhecido o princípio de fraternidade, em que os deveres e as responsabilidades são proporcionais à idade e ao saber.
Mas de que maneira pode a idade entrar em linha de conta pelo que respeita à humanidade? A menos que se encontre, na raça humana, um elemento pelo menos análogo à idade do indivíduo numa família, sentiremos alguma dificuldade para justificar a fraternidade e fazer dessa uma pedra angular para os séculos futuros.
O que existe para os membros duma mesma família, existe também para a humanidade; dum lado como doutro, há diferenças de idades.
A Lei da Reencarnação
Os membros duma família nascem uns após outros e constituem o lar familiar composto de pessoas e de crianças de idades diversas; o mesmo (p. 108) acontece para a grande família humana. Os espíritos humanos e providos de inteligência, que formam a vasta família que conhecemos, não têm todos a mesma idade; não manifestaram, ao mesmo tempo, uma existência individual. A ideia de Fraternidade acresce, pois, a suprema lei da reencarnação que produz as diferenças de idades para as próprias almas e segundo a qual existe, na humanidade, mais velhos e mais novos.
Essas diferenças de idades não se aplicam necessariamente às castas ou classes que, na nossa sociedade moderna, se distinguem umas das outras, embora o sistema das castas na Índia tenha sido baseado precisamente nas idades diversas dos egos em reencarnação. Esse último sistema caiu há muito tempo no esquecimento, e já não encontrareis na terra essa ordem definida dos nossos antepassados Arianos no começo da história. Contudo, nos é possível discernir a juventude ou a maturidade duma alma examinando ao longo de sua vida as características que o homem traz inatas, desde o momento do seu nascimento. Estudando o caráter, os sinais de juventude ou de maturidade aparecem distintamente.
As almas incapazes de adquirir uma certa soma de conhecimentos, as almas cuja moralidade é fraca, que são egoístas, que pensam com avidez no prazer do momento sem se inquietar com os inconvenientes (p. 109) que daí resultam para o futuro; o homem trivial, superficial; aquele que procura a vida fácil, se deixa guiar pelos seus caprichos; aquele cujos pensamentos são fracos, cuja vontade é tal que é impossível de jamais contar com ele; aquele que é inconstante, frívolo, facilmente arrastado pelas circunstâncias: tais são as características das almas jovens que, no passado, não atravessaram senão um número muito limitado de experiências, experiências graças às quais o caráter se forma e a vontade se treina.
Se, pelo contrário, encontrardes indivíduos de juízo calmo e cujas capacidades intelectuais são grandes, que adquiriram o poder de transmutar o seu saber em sabedoria, que são inabaláveis nas suas convicções, prontos a olhar para o futuro sem se importarem com as atrações efêmeras do presente, dispostos a sacrificarem um pouco do seu bem estar atual para aumentarem o bem estar geral, encontrar-vos-eis então em presença de homens ou de mulheres cujas almas são idosas e passaram por numerosas experiências, tendo assim, e gradualmente, desenvolvido as suas capacidades trazendo com elas os resultados duma colheita feita há muito tempo. Essa grande Lei da Reencarnação é inseparável do princípio de Fraternidade se quisermos aplicá-lo e vivê-lo na vida ordinária. (p. 110)
Somente a aceitação dessas diferenças de idade contribuirá para edificar uma sociedade sabiamente organizada e feliz. Se acontece que almas novas ascendem ao poder e à riqueza, a nação sofrerá com isso, porque, em vez de homens, são crianças que governam. Pelo contrário, é bom para um povo considerar a sabedoria como conferindo o direito de autoridade, de se deixar conduzir pelo sábio, simultaneamente profundo pensador e grande sábio. Um povo não sofrerá onde poder e saber estiverem unidos, onde a experiência delimitará os direitos e preservará a bandeira da honra de qualquer mancha.
Graças somente a essas ideias, que derivam da aceitação da reencarnação, graças somente a essa grande lei da natureza, nos será possível de lançar, sem perigo, as bases duma nova e forte sociedade.
Objeta-se às vezes isto: se pretendeis poder edificar uma sociedade com esses altos princípios por bases, é-vos necessário mudar a natureza humana; essa é profundamente egoísta, superficial, escrava dos seus hábitos. Ora, como criar uma sociedade verdadeiramente forte e nobre com elementos grosseiros e superficiais? Os sábios formam apenas uma minoria, que meios empregareis para chegardes a conceder-lhes o direito de governar?
A Lei do Carma
É certo que a natureza humana terá muito que fazer para atingir um nível mais elevado que aquele que ocupa hoje; mas não se deve esquecer que ela varia a cada instante; não se inaugura, pois, um método (p. 111) novo pretendendo modificá-la. A natureza humana está em perpétua via de transformação à medida que os séculos se acrescentam aos séculos, que as civilizações se sucedem umas às outras. Se vos quereis dar ao trabalho, uma vez para sempre, de compreender a lei da existência, se quereis enfim empregar o pensamento na formação e no aperfeiçoamento do caráter; se quereis lembrar-vos que existe uma inviolável lei de causalidade que os teósofos chamam Carma e que atua em todos os departamentos da vida humana sem exceção; se quereis colocar a vossa confiança na lei da reencarnação, fundar a vossa esperança na inviolabilidade da lei de causa e efeito, como nas certezas que ela vos oferece, sabereis que a natureza humana é extremamente maleável e, conforme compreendermos mais ou menos bem a lei, os vossos progressos serão mais ou menos rápidos.
Julgais que o pensamento seja impotente para combater os sentimentos de egoísmo? Não é ele a força geradora de todas as grandes transformações? Não segue a ação a ideia? Deixai-me dar-vos dois exemplos notáveis recordando-vos os nomes das duas únicas nações da Europa que obtiveram a unidade nacional durante a nossa geração: a Itália e a Alemanha. Indico-as como exemplos de nações que, outrora compostas (p. 112) de vários Estados que questões de interesses dividiam, souberam, todavia, atingir a unidade como nações. Como se produziu esse fato? Nas duas regiões o ideal da unidade foi exaltado. Quando os poetas alemães durante anos glorificaram a pátria, quando esse amor da pátria despertou nos jovens, quando os poetas cantaram esse ideal, o soldado uniu-se ao cidadão, e juntamente lançaram-se à obra para reunir todos os Estados em um só grande.
O mesmo sucedeu igualmente com a Itália. Muito tempo antes que se tratasse de guerra ou de revolução, muito tempo antes que a ideia chegasse a recorrer à espada, os pensadores italianos tinham falado da unidade italiana, os patriotas tinham glorificado o ideal de unidade da Itália e, quando este ideal inflama os corações dos jovens, encontrou-se a força do sacrifício, a força de seguir a espada dum Garibaldi e de obter finalmente um povo unido na Itália.
O entusiasmo é o produto do ideal; o sacrifício espontâneo das forças vivas dum indivíduo é o resultado do ideal para o qual se tende.
O que precisamos fazer para modificar a natureza humana? Basta simplesmente apresentar aos jovens do nosso tempo grandes ideais. Que esses jovens inflamem os seus corações, despertam nele um entusiasmo comunicativo até que o sacrifício se torne uma alegria e já não mais um sacrifício, até que o fim que perseguem se realiza na terra! (p. 113)
A Natureza Humana É Divina
É assim que a natureza humana se modificará, porque não esqueçais que a natureza humana é divina, não é demoníaca; há um deus no coração de cada homem, um deus que manifesta pouco e pouco os seus poderes divinos. Eis porque o poder do ideal inflama; eis porque o pensamento constrói o caráter.
Passemos agora dos princípios ao domínio das coisas práticas e vejamos, entre os problemas sociais, aquele que parece ser suscetível de uma pronta solução se lhe aplicarmos o princípio de fraternidade com os seus corolários: a Reencarnação e o Carma.
O Problema da Educação
Esse, evidentemente, é aquele problema que se apresenta em primeiro lugar. É nesses corpos plásticos, nesses cérebros brandos e maleáveis das crianças que residem as maiores possibilidades de despertar rapidamente os nobres sentimentos relativos ao ideal social.
Como disse na minha primeira conferência, a tentativa que se fez com o fim de separar a moral da religião, de tornar uma independente da outra, está voltada a um fracasso certo pelas razões que já indiquei.
É fácil compreender que impacientes pelas (p. 114) disputas dos sectários, os políticos e o público pensem em rejeitar a religião, e desejem desde então evitar as controvérsias religiosas nas escolas. Mas se aplicardes o princípio de Fraternidade à religião, podeis, com justa razão, num país em que a maior parte dos indivíduos são cristãos, pelo menos de nome, esperar encontrar um terreno de entendimento quanto à questão da educação das crianças.
Na Índia, como aqui, existem religiões sectárias; há divisões entre as escolas que se entregam aos estudos religiosos, e, há uns doze anos, teríeis ouvido dizer lá, como hoje na Inglaterra, e isso com tanta convicção como no presente: é impossível ensinar a religião às crianças hindus, as lutas entre as seitas tornam a união ilusória, e como quereis ensinar seja o que for às crianças se não estás de acordo sobre as próprias bases do ensino a dar?
Então, como hoje, o abismo não parecia estar perto de ser preenchido e, todavia, no espaço de quatro ou cinco anos, a religião estava resolvida na Índia, pelo menos no que respeita ao Hinduísmo, religião de uma enorme maioria. O que se fez para isso? Aplicou-se simplesmente o princípio de Fraternidade. Alguns de nós, de acordo com os Hindus teósofos, nomearam uma comissão destinada a reunir, de um lado, as doutrinas essenciais do Hinduísmo, do outro, tudo o que parecia inútil ou especial para uma seita. Quando se fez isto, lançamo-nos à obra, pedimos aos estudantes que recolhessem, nas Escrituras da Índia, tudo o que eles pudessem encontrar relativo às (p. 115) doutrinas características do Hinduísmo, e, quando os textos foram suficientemente numerosos, um teósofo realizou então a tarefa de produzir uma espécie de catecismo do Hinduísmo.
Quando esse ficou pronto, tiraram-se umas cem cópias dele que foram enviadas aos chefes das principais escolas e ramos de filosofia. Lhes pedimos que tomassem conhecimento do manuscrito, que lhes fizessem as suas objeções e todas as observações que julgassem úteis. Quando essas cópias andaram assim de mão em mão entre as seitas hindus que as opiniões dividiam, elas voltaram para nós cheias de correções e de observações.
Mais uma vez retomamos o nosso trabalho, examinando as críticas, adotando as opiniões dadas sobre as quais estávamos todos de acordo. Quando finalmente apareceram a obra elementar e a mais avançada sobre o Hinduísmo, elas espalharam-se rapidamente por todas as seitas da Índia e foram adotadas imediatamente como contendo uma exposição imparcial das doutrinas fundamentais do Hinduísmo. Essas obras foram admitidas sucessivamente em todas as escolas de maneira que, quando o grande regente muçulmano, do Decan a Hyderabad, desejou dar aos seus súditos uma educação hindu, tomou simplesmente esses livros, dotou com eles todas as escolas para que os Hindus misturados no seu povo pudessem ser instruídos nas suas crenças. O mesmo fez o Governo inglês no Princes College de Rajputana, no dia em que viu que a educação laica tornava os princípios imorais e incapazes de governar. Durante esses últimos oito (p. 116) anos, esses livros se espalharam, foram adotados por toda a parte.
Julgais que as divisões entre cristãos são tão profundas que se não poderia tentar para esses o que se tentou para os hindus? Os pontos comuns não são mais numerosos que os pontos em litígio? Não podeis educar os vossos filhos; esperais que eles sejam grandes para os ver amplificar o sectarismo de certas doutrinas?
A fim de chamar ainda mais a vossa atenção sobre este assunto, vou lhes repetir o que um dia me pediu o diretor duma instituição pública: “Madame Besant”, disse-me ele, “não podeis escrever um manual para os cristãos?” E eu respondi: “Sim, poderia escrever uma tal obra, mas recearia nunca os ver servirem-se dela.”
Isso deve ser obra de uma autoridade cristã reconhecida como tal. Estou persuadida que um teósofo, melhor que nenhum outro, poderia encarregar-se duma obra semelhante, porque não se prende às formas e dispõe-se a pôr em relevo mais os pontos de concordância que os pontos de divergência. Mas é precisamente importante que esse trabalho seja empreendido, não por um teósofo, mas sim por um homem que estivesse animado pelo espírito da Teosofia; em outras palavras, por um homem cujo espírito estivesse impregnado da Sabedoria Divina e para quem toda a forma religiosa fosse uma expressão da verdade e não uma fonte de querelas. (p. 117)
Suponde que isso se faça por toda a parte onde haja cristãos; vede todas as vantagens que daí resultariam. Isso não seria tão difícil de realizar. Há, com efeito, certas doutrinas que todos vós estais prontos a aceitar, por pouco cristãos que sejais; não teríeis mais que lhes adaptar uma forma racional, inteligível, e colher nas vossas Escrituras os versículos que a elas se aplicassem, o que lhes daria assim um valor incontestável sem que aqueles, para quem as Escrituras fazem autoridade, pudessem censurar.
Tive a esse respeito uma ideia que poderia provavelmente ser realizada; interroguei-me se não seria possível escrever um manual universal interessando a religião e a moral, com o auxílio de textos extraídos de todas as Escrituras das grandes religiões, de todas as Bíblias da humanidade, cuja autoridade seria, por assim dizer, condensada em uma doutrina universal. Assim, se poderia ter um livro que o Cristão, o Hindu, o Parsis (Zoroastrismo), o Budista, o Muçulmano, poderiam utilizar. E além disso seria bem possível tirar dessas diferentes fontes elementos comuns a todas elas, o que não impediria que cada crença acrescentasse os seus ensinamentos especiais a essa grande base; assim, todas as crenças seriam igualmente irmãs. Isso é um sonho sem dúvida, mas eu o julgo realizável.
De tudo o que dissemos se infere que a nossa educação não pode ser independente dos ensinamentos religiosos sem os quais não podemos fornecer bases sólidas à moral.
Por outro lado, que aconteceria se considerasse (p. 118) o Estado como uma grande família composta de crianças de diversas idades, de capacidades diferentes, crianças que se educariam da mesma maneira? Daqui resultaria um sistema de educação no qual uma grande soma comum de conhecimentos intelectuais e morais seria dada a cada criança até à idade de dez ou onze anos; depois interviria uma espécie de classificação segundo as capacidades individuais de cada um. Já não pensareis então, quando uma criança revela disposições musicais, em juntar a essas disposições algumas tinturas de três ou quatro outras artes, de modo que a criança não é boa numa e fica sendo superficial em tudo. Desde que notei uma aptidão especial para a música, deveria abandonar todas as outras coisas para fazer da música o estudo principal da criança. Se virdes um gosto pela cor e pela forma, dirigi então a criança para as artes plásticas ou para a pintura.
Assim, lenta e gradualmente, vereis que o poder da arte deve passar para as mãos dos artistas da nação, que a maior parte dos vossos filhos e das vossas filhas devem ser preparados a tornarem-se os seus artistas e isso contra o futuro mesmo das artes manufatureiras. Somente nessa condição, assistireis ao regresso da Beleza na vida, vereis de novo o sentimento da Beleza desenvolver-se na nação.
Se notardes aptidões literárias, não insistiremos mais – assim como o fazeis sobretudo para as vossas filhas – já não insistiremos para que façam todas um pouco de música, para que aprendam um pouco de desenho e de canto; poreis de lado todas essas coisas para só (p. 119) vos ocupardes da aptidão literária, quando a encontrardes, e para dirigir desde então a educação da criança nesse sentido.
Trata-se de disposições para a ciência, fazei dessa o ponto principal do vosso ensino, sem esquecer de lhe acrescentar simplesmente um pouco de literatura e de ideal, sem o que a vossa ciência arriscaria a ser vulgar e impediria a sua nobre adaptação à vida humana.
Trata-se de aptidões para a mecânica, procurai desenvolvê-las, sem nunca esquecer que a criança não deverá deixar a escola antes de ter aprendido o meio de ser útil ao Estado ganhando a vida.
Todo o trabalho não habilmente feito deveria ser desde então, em todos os domínios da atividade humana, um resto do passado. É importante que especializeis a criança na idade em que ela é ainda capaz de aprender a fundo o que, mais tarde, é destinado a ser um ganha-pão.
Muitos erros são devidos ao sistema atual de educação graças ao qual a criança recebe uma instrução demasiado literária em detrimento da habilidade que lhe é necessária quando se destina a um trabalho manual. É-vos necessário, nas vossas escolas, um método de treino mais prático que o que existe atualmente; (p. 120) deveis desde já evitar crer que tal ou tal forma de atividade humana seja mais ou menos nobre que tal ou tal outra, aquele que se serve habilmente das suas mãos é tão honroso como aquele que se serve bem do seu cérebro. A única coisa que é desonrosa consiste em servir-se mal das mãos ou do cérebro. O vosso principal defeito é o de exclamar: “Oh! Isto é suficiente! Isto caminhará!” Nada caminhará se não for feito tão bem quanto fordes suscetível de o fazer; de outro modo não fazeis senão uma porcaria que macula o espírito em vez de o elevar.
Não é o gênero de trabalho a que vos entregueis que é desonroso ou não, é o espírito que nele empregais; é também a qualidade das obras que produzis.
Enquanto não tiverdes inculcado esses princípios à nação e não tiverdes prestado ao trabalhador a sua dignidade de artista; enquanto um carpinteiro quiser, sem razão, instruir o seu filho para fazer dele um escrevente de notário em vez dum artífice usais mal as vossas forças atravancando os vossos empregos; enquanto não tiverdes restabelecido esse equilíbrio do dever humano e do trabalho humano, não podeis esperar fazer uma sociedade que seja sã e forte.
Passemos a outras coisas, cuja necessidade se faz tão vivamente sentir na educação: a disciplina, o sentimento do dever na vida. Penso que isso se aprenderá mais particularmente durante os recreios do que em classe. Pode parecer extraordinário vê-lo servir-se, para isso, da influência do jogo sobre um rapaz. É, todavia, muito natural. Quando um rapaz é membro (p. 121) da equipe quer seja de cricket, de futebol ou de hockey, pouco importa, esse rapaz nunca será um sucesso enquanto não tiver aprendido a pensar mais na sua equipe do que em si mesmo. Aqui, a ideia duma coletividade impõe-se já ao seu espírito e aparece-lhe como sendo, de fato, superior aos seus próprios interesses. É no jogo que os rapazes e as jovens aprendem mais duma lição que os tornará no decorrer do tempo melhores cidadãos. Eles aproveitam lições tais como essas: o sentido da ordem e da disciplina, executar com honra a sua tarefa, quaisquer que sejam a função que se desempenhe e o lugar que se ocupa durante o jogo. No cricket ou no futebol, podeis ser colocados neste ou naquele lugar do campo, o dever do jovem jogador consiste em desempenhar bem as suas funções lá onde o seu capitão o colocou sem desejar estar noutro ponto do campo. Essa disciplina no jogo tem mais valor que a da classe, porque é voluntária, alegremente consentida, estimulada por um ideal em vez de o ser pelo medo dum castigo. Daqui a importância do jogo, importância que há em ensinar aos jovens segundo as regras.
O maior dos perigos em que incorrem as pretensas nações democráticas, reside na ausência do sentimento de disciplina, a falta de ordem, a recusa à obediência; sem tudo isso nenhuma nação pode engrandecer-se.
Quando da minha última estada na Austrália, aconteceu que um jovem mineiro abandonou o seu posto em consequência duma admoestação que lhe (p. 122) tinha sido feita a propósito do seu trabalho. Toda a mina decretou a greve a fim de defender o rapaz dos ataques que eram feitos à sua liberdade. Essas coisas acontecem-nos de tempos a tempos; enquanto esse fato se der, enquanto entre vós se encontrarem semelhantes elementos, não podeis modificar o caráter geral da nação; não tereis a vossa disposição senão um monte de blocos de mármore sem coesão. Com materiais desprovidos desse sentimento do dever que liga as coisas entre si, com materiais desprovidos além disso do sentimento de responsabilidade não podereis edificar um Estado.
Lá onde faltam a disciplina, a ordem, a obediência, falta também a grandeza. Mas tudo isso pode obter-se se basearmos definitivamente a educação sobre essas ideias de fraternidade, de reencarnação, de lei. Deixando esse domínio, dirijamos agora a nossa atenção para uma questão importantíssima: a penalidade.
O Tratamento dos Criminosos
O que é um criminoso? Os criminosos podem ser divididos em duas classes: a primeira é a das almas jovens, que precisam ser (p. 123) educadas; a segunda é a das almas cujo desenvolvimento foi contrariado de maneira tal, que a inteligência evoluiu mais rapidamente que a consciência, em vez de evoluir paralelamente a ela. A essa classe pertencem os criminosos mais perigosos e mais difíceis de tratar.
A alma jovem é, por assim dizer, a um selvagem; um tal ser, dum grau de evolução tão inferior, teria sido, no começo da nossa raça, guiado para uma tribo selvagem, para alguma ilha ou deserto onde a rude existência do selvagem o teria abrandado. Ter-se-ia, sem dúvida, tornado grosseiro, duro, cruel; mas teria, pelo menos, e gradualmente, habituado à sua jovem alma a um sentimento de dever para com a sua tribo. Hoje, estando mudados os tempos, tendo a humanidade progredido rapidamente, já não há no mundo lugares suficientes que respondam a essas condições e que permitam um desabrochamento gradual dessas almas jovens. O que nós chamamos nações civilizadas espalharam-se por toda a superfície do globo, expulsaram dos seus domínios os indígenas que encontraram, apoderaram-se das suas ilhas, apropriaram-se das suas terras depois de terem mandado os primeiros proprietários para o outro mundo. Que foi feito de todas essas vítimas?
Elas encarnaram, seguindo nisso a lei da evolução; mas em consequência doutra lei, tão natural como a primeira, reencarnaram nas nações que mais contribuíram para as desapossar e as imolar.
Como deveis pensar, nada mais lógico do que (p. 124) vivermos sob o regime da lei e não ao acaso da fortuna; por isso, isto seja dito com o mais profundo respeito, não nos devemos admirar de ver a Inglaterra alimentar no seu seio tantos antigos selvagens. Deus neles ainda não despertou, chegam à existência como selvagens que são ainda. Jamais criminosos por hereditariedade. Na realidade são almas jovens, sem moralidade, de cérebro pouco desenvolvido, possuindo, todavia, uma certa força, uma certa astúcia e alguns vislumbres de inteligência, mas, apesar de tudo, fundamentalmente muito jovens. Além disso, encontramos outras almas, encarnadas nessas baixas condições e que ainda não estão inteiramente prestes a suportar, como as suas irmãs mais velhas, uma sociedade que as entrava nas suas ações; são criminosos ocasionais para os quais tendes uma demasiada tendência para enfileirar no número dos criminosos inveterados.
Chegamos à segunda classe de que falei há pouco, a dos indivíduos cuja evolução normal foi contrariada e que mencionei como sendo das mais difíceis de tratar. São, na maioria, homens muito inteligentes que empregam as suas faculdades intelectuais em roubar, em vez de as empregar nos limites da lei. Essas espécies de homens são muito numerosas. Às vezes ultrapassam apenas os limites da lei, outras vezes mesmo ficam por ali, mas sob o ponto de vista social, lembrai-vos de que existem muitos criminosos que se contentam, como se costuma dizer, em costear a lei, o suficiente para evitar a prisão. Este ponto relaciona-se com o exemplo que outro dia vos apresentei a (p. 125) propósito daquele homem que arruinou a companhia de caminho de ferro de todo um distrito, aproveitando essa ruína para acumular uma considerável fortuna.
A Lei do Carma, da Justiça Eterna e Divina
Esse não é um criminoso tal como habitualmente se concebe, os agentes não podem prendê-lo como um ladrão, mas em face da Lei da Justiça Divina, mesmo que pelo emprego dos meios legais, esse homem que roubou milhares dos seus semelhantes, privando-os do seu ganha-pão, esse homem é pior que o gatuno que se lança na prisão por ter roubado a carteira de dinheiro dum transeunte.
Existe, em toda a região civilizada, bom número de outras coisas que são ilegais, ficando legais sob o estrito ponto de vista da lei; muitas delas disfarçam-se sob o nome de Sociedades Anônimas (sociedades por ações). É muitas vezes difícil demonstrar-lhe a fraude; contudo é um fato a constatar, veem-se sempre essas Companhias periclitar; as pessoas que lhes compraram as ações são roubadas, enquanto o promotor sai ileso, e torna-se até mesmo um homem muito considerado e muito bem acolhido na sociedade.
É certo que colocando-nos no ponto de vista social isso é profundamente imoral; mas não podemos chamar-lhes criminosos no sentido próprio da palavra, embora a lei esteja pronta a atacá-los se eles ultrapassam sensivelmente a medida. (p. 126)
Como vamos nós agora tratar as almas jovens; como evitaremos fazer delas criminosos inveterados ou reincidentes? Existe alguma coisa mais triste e mais vergonhosa que as condenações que se acumulam às vezes até ao número de cinquenta ou sessenta para um mesmo indivíduo com, todas as vezes, julgamentos cuja duração cresce proporcionalmente ao número dos delitos cometidos, sob o pretexto de que o acusado é um criminoso inveterado? Mas sois vós que, por assim dizer, o obrigam a tornar-se o que o acusais de ser.
Não deveríeis tratar um homem que violou a lei lhe infligindo sete dias, um mês ou ano de prisão, pena que alongam a cada reincidência. Não tratais os doentes assim! Não vedes se um só médico ordenar sete dias de hospital a um paciente de varíola, ou um mês de uma clínica de repouso para um acesso de febre; os pacientes são retidos e cuidados até que estejam inteiramente curados, e é assim que deveríeis tratar quem tivesse tendências para o crime.
Não deveríeis punir, mas socorrer; o vosso dever seria o de vos encarregardes dessa alma infantil e de a reconduzir para o bem.
Não deveríeis tampouco, nas vossas prisões, infligir trabalhos inúteis sob o pretexto de punir. O criminoso cuja alma é a dum selvagem tem sempre horror ao trabalho; é sempre preguiçoso; isso é devido à sua juventude. Se pretendeis mandar-lhe fazer, a título de castigo, trabalhos forçados e inúteis, somente conseguiremos aumentar o seu aborrecimento por todo (p. 127) o gênero de trabalho; ele haverá de odiá-lo mais quando sair da prisão do que quando para lá entrar.
Fazer carregar e descarregar balas dum canto do pátio da prisão para o outro canto e vice-versa, infligir essa inútil tortura do moinho de disciplina, não é curar o preso, mas fazer dele um criminoso. Quando um tal homem se encontra nas vossas mãos, o vosso dever é cuidar dele, tratá-lo como um irmão mais novo que não sabe ainda conduzir-se; o vosso título de mais velho a isso vos obriga. É necessário ensinar-lhe um ofício honesto que lhe forneça o meio de ganhar a vida; é-vos necessário previamente discipliná-lo, não cruelmente, mas com firmeza e paciência; fazei-lhe compreender essa lei segundo a qual todo o indivíduo que recusa trabalhar não tem o direito de comer; ensinai-lhe, na prisão, a merecer o alimento, e a dentro das próprias paredes do seu cárcere, ele ganhará a sua existência esperando o dia em que lhe proporcionem a ocasião de continuar a trabalhar no exterior da prisão.
Se ele então recusar e voltar de novo às vossas mãos, recomeçai a disciplina-lo, até que esteja completamente curado; isso demandaria vários anos, porque a construção dum caráter leva muitas vezes um tempo bastante longo. Podeis evitar de fazer da vida na prisão uma coisa degradante, o que é hoje o caso; mas sim de fornecer ao preso os meios de se recriar por meio de distrações que elevem o espírito em vez de o deixar abater-se sob a influência do pesado sentimento da desgraça que ele sente entre as paredes da prisão. Tendes certamente o direito de o isolar para (p. 128) que ele não prejudique a sociedade, mas deve tratá-lo como um jovem no grande lar nacional, conduzi-lo gradualmente para o bem, e, quando ele consentir em viver uma vida melhor, dar-lhe as chaves que lhe restituirá a liberdade. Há também muitas vezes muito que fazer antes de prender.
Nestes últimos tempos acaba-se precisamente de ensaiar aqui o que se chama:
O Sistema de Prova
Foi inventado na América e deu já excelentes resultados em algumas regiões. Um membro da nossa Sociedade, Miss Lucy Bartlett, teve o imenso privilégio de introduzir este sistema na Itália onde é agora indispensável.
Em que consiste? Quando um rapaz ou uma rapariga comete um primeiro delito, não é mandado para a prisão se um generoso e honrado cidadão se apresentou perante o tribunal dizendo: “Encarrego-me desse menino, dessa menina, desse rapaz, dessa donzela . . . Serei o seu amigo, cuidarei dele ou dela.” Então o culpado não é lançado na prisão; a pena é suspensa, e não é aplicada a não ser que ele se não corrija, e muito raro é que não se corrija. Um homem – ou uma mulher – pertencente à classe rica da sociedade e tornando-se o amigo um irmão ou duma irmã mais jovem, isso (p. 129) basta, na maioria dos casos, para o reconduzir ao bem. O mais velho faz-se amigo do culpado, passeia-o de tempos a tempos, fala-lhe, trata-o verdadeiramente como um irmão ou uma irmã, e o culpado emenda-se, tão grande é a força do amor que desperta em outrem o respeito de si, tão grande é a necessidade de ser louvado.
Tais são os meios a empregar – que a maior parte das vezes triunfam – para reconduzir à virtude aquele que enveredou pelo caminho do vício pela primeira vez. Além disso, a amizade construída durante o período de provas continua durante toda a vida entre protetor e protegido; conforto, auxílio, instruções fazendo-se cada vez mais eficazes e aproveitando a um tão bem como a outro.
O sistema é aplicado na América já há muito tempo para que possamos julgar do seu valor; funciona igualmente na Itália há dois ou três anos, o que é pouco, mas bom número de homens e de mulheres da classe rica se ofereceram para se tornarem os amigos dos desgraçados que se encontram sob os golpes da lei.
É certo que não poderia existir melhor aplicação da Fraternidade quanto ao tratamento dos criminosos; é cumprir o dever que incumbe a todos aqueles que jovens sucumbem. Não posso deixar esse assunto sem dizer uma palavra da pena capital. (p. 130)
A Pena de Morte
Quem admitir o princípio da Fraternidade não pode na verdade sustentar e defender esse gênero de castigo. Talvez alguns de vós se recordem daquelas palavras dum francês gracioso: “Que os senhores assassinos comecem.” Mas é dos níveis superiores que deve vir o exemplo e não dos níveis inferiores. Não podeis esperar que o vosso assassino respeite a vida humana se, segundo as vossas leis, lhe ensinais que o assassino encontra o seu castigo noutro assassinato. Sim, é certo, um é passional, o outro é legal, mas se a lei não ensina o respeito da vida humana, como quereis que o criminoso, escravo das suas paixões seja levado a ter respeito?
Não me demorarei no pouco caso que se faz da vida dum homem suprimindo-o; chamarei antes a vossa atenção para um ponto muito mais importante. Não vos desembaraçais de nenhum modo dum assassino suprimindo-o, apenas vos desembaraçais do seu corpo físico e esse corpo é a prisão mais prática que podeis encontrar para pôr o indivíduo em lugar seguro. Encarcerando-o evitais que ele cometa novos crimes, o que sois incapazes de fazer quando, pela pena de morte, libertastes a alma. Não matais, não o podeis, o que matais é o corpo; quanto ao indivíduo, simplesmente lhe abristes as portas do mundo vizinho que interpenetra o nosso e cujos habitantes nos cercam a todo momento. (p. 131)
O enviais para lá cheio de pensamentos de ódio, vibrante de cólera e premeditando já sanguinolentas vinganças contra aqueles que atentaram nos seus dias. Torna-se então o instigador de novos assassinatos estimulando, incitando outros criminosos ao assassinato. Nunca observastes que uma mesma espécie de assassinatos se encontra frequentemente no mesmo meio até formar o mesmo gênero de atos repreendidos? Sei que a imprensa, ao dar o detalhe de todos esses horrores, contribui largamente para inspirar as más imaginações, e aumenta assim as tentações provenientes do mundo para onde mandastes o condenado. Numa região civilizada, os detalhes do crime nunca deveriam ser dados à publicidade; os homens deveriam enfim ver que procedendo desse modo, não fazem mais que estimular o espírito de imitação e tornar o assassino mais frequente.
Há uma outra razão que deveria impedir-nos de enviar tão facilmente um homem para a morte. Quando um criminoso está entre as vossas mãos, deveríeis lembrar-vos de todas as existências que o esperam, deveríeis dar-lhe alguma coisa que ele levasse consigo para além do túmulo, alguma coisa que, no outro mundo, fosse susceptível de se transformar pouco a pouco em senso moral; deveríeis lembrar-vos de que ele voltará num corpo físico. É então vosso dever preparar-lhe essa encarnação futura, fornecendo-lhe no presente, tudo o que o pensamento e o amor humano podem comunicar-lhe de bom e de bem. Repito, temos um grande dever a (p. 132) cumprir para com essas almas jovens a fim de que elas possam aproveitar da nossa civilização em vez de sofrer com ela como é demasiadas vezes o caso nos nossos dias.
Questões Econômicas?
Qual será o resultado do princípio da Fraternidade aplicado aos problemas econômicos? A solução desse problema exige certamente fortes inteligências que sejam capazes de encontrar um justo equilíbrio entre a produção e o consumo de maneira a que de um lado os homens tenham que sofrer menos da miséria em que estão mergulhados, do outro, menos inúteis no luxo de que se cercam.]
O Socialismo
Não é o Socialismo das ruas que permitirá resolver esses grandes e difíceis problemas. Não podeis resolvê-los senão tomando em consideração todos os problemas secundários que a eles se prendem. Um sistema de cooperação geral, de interesses comuns, ou qualquer coisa desse gênero, podem ser os princípios susceptíveis de melhorar as condições sociais. A menos que não torneis os (p. 133) trabalhadores mais felizes, mais satisfeitos da sua sorte, não poderão exercer domínio sobre o ignorante, porque esse domínio ameaça sempre os seus meios de existência, é, pois, a ruína. Deixai-me dar-vos um exemplo que vos indicará mais claramente as minhas visões a esse respeito.
Há vários anos que numerosas greves se rebentaram nesse país, e não podemos duvidar que elas foram causadas tanto pela avidez da classe dirigente como por um tratamento injusto para com os operários. Seja como fosse, essas greves, na maioria dos casos, colocaram o operário em níveis mais baixos do que aquele que ele ocupava antes de se revoltar.
Encontrava-me outro dia em Tyneside (Newcastle) e todos os pontos vizinhos como também toda a costa de Sunderland formava outrora, na Inglaterra, grandes centros de construções marítimas. As greves consecutivas paralisaram pouco a pouco a atividade desses centros, na impossibilidade em que se encontravam de pagar as tarifas exigidas. Por este fato, a região cessou de ser a grande região operária e marítima que era, o comércio caiu, a ruína se estendeu. Não podeis censurar os grevistas que lutaram pelo seu bem-estar; eles não compreendiam as dificuldades a que todas essas grandes casas deviam fazer face; não compreendiam que tornavam a construção dos navios impossível aos seus patrões, pedindo-lhes salários que não eram demasiado elevados, mas que o construtor não podia aceitar, dadas as exigências da vida comercial de então. E é sempre assim. (p. 134)
Uma inteligência prudente e um juízo são indispensáveis para essas questões. Sentindo isso, as câmaras de comércio propuseram elevações graduais de salários, comissões de arbitragem, etc. Tudo isso está muito bem, mas surge uma dificuldade nas nossas comissões de arbitragem, porque as suas decisões não são sempre aceitas. Quando os indivíduos apelam para a comissão, é sempre com a esperança que decidirão em seu favor; se isso não acontece, eles não estão dispostos a se submeter. (p. 135)
É necessário, de cada lado, um estado de espírito particular que somente o interesse geral anime; de outro modo, resultam, afinal, mais perturbações que antes, e o comércio cessa, lá onde as condições se tornaram contrárias. É o que acontece atualmente na Austrália: as pessoas versadas nos conhecimentos mineiros e outras coisas análogas fixam os salários que as companhias marítimas devem dar aos seus marinheiros. Por isso, quando os barcos da Companhia P.&O. chegam às águas australianas, os armadores são obrigados a retribuir os seus homens nas condições impostas pela situação econômica na Austrália. – Qual é o resultado disto? – Os navios P.&O. não partem; as companhias não podem arruinar-se pelo prazer dos operários australianos; os meios de transporte são suprimidos e, quando o mal está feito, o remédio chega sempre demasiado tarde. Eis o que acontece em toda a parte onde os operários chegaram ao poder; querer-se governar antes de haver aprendido a fazê-lo; querer-se o poder antes de se lhe ter compreendido as leis.
Trabalho das Mulheres
A mulher reclama bem alto o direito de trabalhar, mas ela muitas vezes se esquece de que os dirigentes podem aproveitar de certas características que lhe são (p. 136) inerentes e que nada pode alterar, porque são fundamentais e naturais. Quando a mulher abstrair dos seus títulos de esposa e de mãe para ir trabalhar para a fábrica, abandonando os filhos que ela deixa sem cuidados, ou para salvaguarda dos quais ela retribui a pessoas serviçais, os salários baixam imediatamente porque sabem que ela consente em trabalhar por pouco, atendendo à miséria dos filhos que ficaram em casa. É então o mundo invertido: a mulher toma o papel do marido, o marido o da mulher. Sucede que os filhos sofrem com a ausência da mãe; o homem, ele, percorre as ruas sem situação, tendo a mulher ocupando o lugar dele, pois trabalha por um salário mais fraco. Tais são, entre muitas outras, as dificuldades duma coisa que parece, contudo tão lógica: o direito para a mulher de trabalhar e de colher os frutos do seu trabalho.
O homem e a mulher nunca serão iguais perante o trabalho, porque a mulher é que trata dos filhos. É nisso que está a diferença; e isso é para a nação uma questão de saúde e de honra.
Pode a mulher, na verdade, exigir os salários que se dá a um homem? Um dia que eu me lamentava dos salários de fome que se davam às operárias das fábricas de fósforos, ouvi esta resposta brutal: A mulher pode sempre que queira aumentar o seu salário. E isso é certo! E isso coloca a mulher num estado de inferioridade quanto à questão do trabalho. O que à primeira vista parecia prometer para o futuro, não fez senão aumentar a crise econômica, expulsou o homem para a rua (p. 137) enquanto a mulher trabalha duplamente, na fábrica e no lar. Esse estado de coisas não pode durar, impõe-se um remédio.
Repito, para se ocupar dessas questões econômicas, são necessários os melhores cérebros e os corações mais generosos, um conhecimento muito vasto do gênero humano e uma profunda simpatia pelos outros. Sem essas qualidades não resolveremos esses terríveis problemas da época; não conseguiremos resolvê-los pela rudeza e pelos meios violentos; vos é necessário empregar a sabedoria e o amor, basear nesta verdade seguinte: O poder de uma nação depende do interesse que se tem por ela; a luta das classes entre si nada pode, a união de todos pelo bem geral somente será fecunda em resultados.
A Política
Perfeitamente! Exclamareis; mas e quanto à questão da política? A falar a verdade, nada posso exprimir-vos a esse respeito, porque não me prendo senão aos grandes princípios, o que não me impedirá, contudo, de voltar um pouco atrás para vos falar ainda dessa Liberdade de que vos falei ao começar essa conferência.
Certas pessoas imaginam que a Liberdade se resume num voto; não podeis cometer erro mais grosseiro. A Liberdade e o voto nada têm de comum. O voto confere-vos o poder de fazer leis para governar, (p. 138) não vos dá de modo algum a Liberdade. Já o disse, nunca gozamos a Liberdade na terra.
Tivemos aqui, na Inglaterra, toda a espécie de leis, mas Liberdade, nunca! Folheai a história, nela vereis a época dos Reis; graças a eles a Inglaterra se erigiu em nação; depois vieram os Barões, e a sua obra não foi tão funesta pois que, no seu tempo, se dizia: “a Inglaterra feliz”! E ninguém pensaria em dizer isso hoje. Em seguida veio a Inglaterra dos Parlamentos; e a partir dessa época ela degenerou cada vez mais; finalmente nasceu o Comércio inglês. E quem nos governa atualmente? Não são nem o Rei, nem os Lordes, nem o Parlamento, são, dum lado o Bezerro de Ouro, e de outro a multidão. Ora, nem um nem outro contribuíram para a prosperidade da nação.
A Liberdade é uma grande deusa, no céu, é forte, benfeitora, austera; mas ela não obedecerá nunca aos uivos das multidões que a chamam; ela não obedecerá tampouco aos argumentos ditados pelas paixões desenfreadas, nem ao ódio das classes entre si. A Liberdade não descerá jamais aqui em baixo, às atividades do mundo, sem que primeiramente tenha descido aos corações dos homens, sem que o Espírito, livre no fundo desses corações, tenha dominado a natureza inferior, as paixões, os desejos insaciáveis e (p. 139) a vontade de abrir um caminho para si próprio caminhando sobre os seus irmãos.
Não podeis edificar uma nação livre senão com a condição de haver homens e mulheres que sejam livres; mas nenhum homem, como nenhuma mulher, é livre, quando é dominado pelos apetites, pelos vícios, pelo álcool, qualquer que seja a forma malfeitora para a qual ele é impotente de domar.
O domínio de si mesmo é a única base sobre a qual podereis erguer a Liberdade. Senão é a anarquia e não a Liberdade. Todas as vezes que a anarquia do tempo presente dá um passo para a frente, a vossa infelicidade é a preço dela. Mas quando a Liberdade vier, ela virá a uma nação onde os homens e as mulheres terão aprendido a dominar-se, a ser senhores de si próprios. Então, mas então somente, numa nação composta de tais homens e de tais mulheres que serão livres, fortes, justos, senhores de si mesmos, prontos a servirem-se das suas forças para o cumprimento de altos e nobres desígnios, numa tal nação podereis gozar então dessa política livre que resulta da liberdade individual, liberdade que não é de modo algum o produto das odiosas paixões do homem.
(Annie Besant. O Mundo de Amanhã. Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1926. 269 pp. Tradução de Fernando Pessoa.)